Uma pequena cozinha situada num estúdio/T0 com 3 separações de lugares pouco evidentes ; uma pequena parede separa a cozinha da sala, tal como outra a sala da cozinha; vê-se ao fundo uma porta, é o quarto de banho; uma mesa de madeira e duas cadeiras manualmente decoradas com motivos florais; em cima da mesa pedaços de comida e de fruta, um copo meio cheio e uma garrafa de Vinho do Porto, um bloco e uma caneta; no chão, vinho derramado e um copo partido; um pequeno fogão a gás, em cima do fogão um pequeno armário com duas portas, um microondas em cima de uma máquina de lavar roupa; na banca, onde se situa o fogão, uma máquina de fazer café, barata e convencional, suja e um pequeno cinzeiro de vidro, cheio de cinzas e pontas de cigarros, alguns inacabados e outras coisas mais; na pia de lavar a loiça, um amontoado de pratos e talheres; uma pequena janela com umas cortinas brancas e morangos estampados, as parede: azulejos azuis e amarelos.
Mia: (acorda; boceja e geme queixando-se das costas; passa a mão pelo pescoço e põem as pernas fora dos lençóis; senta-se na cama)
(ouvem-se passos, primeiro em direcção ao quarto de banho, ouve-se o tampo da sanita a bater, depois em direcção à sala; chega à cozinha; abre o frigorifico; no frigorifico: uma grade de cervejas, bandas de cera depilatória, um verniz encarnado, restos de chop suey de galinha, ketchup, framboesas e duas garrafas de vinho; coça a cabeça e volta a fechar a porta do frigorifico; dirige-se ao pequeno armário por cima do fogão abre uma porta e retira cereais, abre outra retira leite e uma tigela, fecha a primeira porta; prepara os cereais na banca e dirige-se para a mesa; volta à banca, pega numa colher do amontoado passa-a por água, senta-se na mesa e come duas colheres.)
Mia: (pensa/diz em voz alta, enquanto aponta no bloquinho preto por cima da mesa e rói a caneta) “Leite… sumo de uva… fiambre e queijo… bolachas de água e sal… hmm e uma garrafinha de Jack no. 7”
Quando me sentir preparada para tomar um banho e enfrentar o mundo, sem medo das alterações climáticas desta cidade, tenho de passar no mini mercado.
O pior não é tomar banho. É ter espelho no quarto de banho e olhar para ele, para o meu reflexo nele e perder toda a vontade de me despir. Ou então dispo-me, tomo banho e vou a correr meter-me na cama sem saber o que vestir e a pensar “que nada me fica bem”.
Costumava deixar post-its na porta do frigorifico, onde escrevia uma nota para mim mesma a falar das minhas qualidades, as virtudes que os outros, mãe e pai, descobrem, não sei bem de que forma, em mim. Ideia encontrada em mais um artigo de auto-ajuda da Cosmopolitan. Mas à umas noites convidei um colega para jantar cá em casa, pela primeira vez tive coragem para o fazer desde “aquela vez”, por isso retirei-os com medo de fazer figura de parva. Como se fizesse diminuir o meu nível de patetice uns 20%. Acabei por fazer figura de parva, como sempre. Já não me basta ser gorda, pálida e ter bochechas rosadas tinha que nascer também parva. Quando era pequena usei daquele óculos grossos e redondos supostamente à conta de uma miopia mas tudo não passava de um problema de leitura, sempre confundi os b’s com os d’s e aos 16, quando finalmente me livrei dos óculos, a minha mãe achou que precisava de um aparelho dos dentes. Pois bem preferia ter os dentes tortos a passar por tamanha humilhação. Mas lá passou, o meu ciclo e o meu secundário sem nunca ter uma ideia e sentir o sabor do prestígio social. E as alcunhas? Nem quero falar das alcunhas. No outro dia, estava eu a saída do McDonalds nos Aliados e encontrei-me com um colega, tentei disfarçar mas foi inevitável. O sorriso de gozo na cara dele, os olhos olhava para todos os lados enquanto me cumprimentava e aquela gargalhada, sim aquela gargalhada de sarcasmo e pena. Entre isso solta um “Hey, se não é a 5 olhos! Minha velha colega como estás? Bem vejo que continuas saudável!”. Morri. Morri de verdade. Quase virei emo e curtei os pulsos.
(solta uma gargalhada)
Lá estou eu a falar sozinha! Isto está-se a tornar um hábito, feio e estúpido.
(repara do copo partido no chão)
Mais um copo, menos vinho.
Paranóia a minha. Aprendi a partir loiça com a minha mãe e a beber vinho com o meu pai. Pena não aprender a gostar de mim com a minha irmã. Tolices!
(varre o copo e limpa o chão)
Tomar banho, que diabo! Tenho mesmo que tomar banho e assistir a mais uma derrota diária. Aquilo de comer só cenouras e maças durou uns tempos, até abrir a barraquinha dos cupcakes aqui no prédio.
(dirige-se para o quarto; pega no telemóvel que está sobre a cómoda)
Uma mensagem. Upa, Upa, será quem? Da Vodafone?
(deita-se na cama; tapa a barriga que ficou à vista quando a camisola subiu ao deitar e chora como uma desalmada)



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